Mateus (Mt 14, 22-33)
Narra o Evangelho que Jesus, após receber a notícia da morte de São João Batista, se retira “para um lugar deserto e afastado”. São Jerônimo, investigando o porquê dessa atitude de Nosso Senhor, ensina:
“Não se retirou a um lugar deserto por temor de que lhe tirassem a vida, como julgam alguns, mas: ou para poupar os seus inimigos, a fim de que não acrescentassem homicídio sobre homicídio; ou para adiar a sua morte até o dia da Páscoa, no qual o cordeiro era imolado como figura e as portas dos fiéis eram aspergidas com sangue; ou para dar o exemplo de que não nos devemos expor temerariamente à perseguição, porque nem todos os que se oferecem a ela perseveram com a mesma constância. Por isso Ele diz, em outra parte: “Quando vos perseguirem numa cidade, fugi para outra” (Mt 10, 23). De onde o evangelista, com propriedade, não diz que Ele fugiu a um lugar deserto, senão que se retirou, mais por evitar que por temer os perseguidores. Também se pode ter retirado, depois de saber da morte de João, a fim de pôr em prova a fé dos fiéis.” [1]
De acordo com São Jerônimo, Jesus teria se retirado também para que o povo pudesse demonstrar o seu amor a Ele. O Papa Bento XVI, ao comparar o episódio da multiplicação dos pães com a primeira tentação de Jesus no deserto, em que Ele se nega a transformar as pedras em pão [2], se pergunta: “Mas por que agora é feito o que antes tinha sido repelido como tentação? Os homens tinham vindo para escutar a palavra de Deus e tinham por isso abandonado todo o resto. E assim, como homens que tinham aberto o seu coração para Deus e para os outros, aqueles podem receber o pão como merecimento” [3]. A multidão viu os pães serem multiplicados porque foram propter Iesum et non propter esum.
Repete-se, com este milagre, a grande lição de Cristo no Sermão da Montanha: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” [4]. Grandes eram a fé e o amor daquele povo, mas também notável era o desapego dos Apóstolos que, sendo doze, tinham consigo apenas “cinco pães e dois peixes”. “Vemos por estas palavras – comenta São João Crisóstomo – a filosofia dos Apóstolos, que os faz desprezar a comida, porque, sendo eles doze, tinham cinco pães e dois peixes. Olhavam efetivamente com desprezo para as coisas materiais e estavam possuídos pelas espirituais” [5].
Também é notável que o povo tenha esperado por Nosso Senhor até o entardecer. Nessa mesma hora, Ele, reunido com os Seus discípulos, instituiu a Santíssima Eucaristia. No Evangelho deste Domingo, de fato, é seguido o mesmo caminho feito na Liturgia: primeiro, as multidões saem de suas cidades para escutar a Palavra e só depois são alimentadas com o pão eucarístico. A vida do cristão também deve ser assim: antes de comungar, é preciso ir ao deserto e converter-se. Assim como não existe multiplicação dos pães sem a acolhida da Palavra, não há comunhão sem verdadeira conformação à vontade de Deus.
Agora, um comentário à ideia segundo a qual “a multiplicação dos pães não foi um milagre, mas apenas um gesto de partilha”.
Em primeiro lugar, é muita falta de fé pensar que Jesus não seria capaz de fazer alguns pães para alimentar uma multidão. Quem nega isso provavelmente tem dificuldades para crer na divindade de Cristo.
Em segundo lugar, muitas pessoas interpretam o ensinamento da Igreja justamente sob uma perspectiva de “partilha”, adotando o método Paulo Freire para as coisas da fé: ao invés de aprender de Nosso Senhor a verdade, as pessoas ouvem o Evangelho para partilhar entre si o que pensam. Ora, quando compartilhamos a nossa miséria, o resultado final é tão somente uma miséria partilhada, “cegos guiando cegos” [6].
Com esse milagre, Jesus quer deixar bem claro que não podemos prover alimentação a nós mesmos. Para que a nossa miséria – vista na escassez dos “cinco pães e dois peixes” – possa alimentar as pessoas, é preciso que passe para as mãos de Jesus. Por isso, precisamos, antes de qualquer coisa, estar com Nosso Senhor, ouvir a Sua Palavra, meditá-la e transformar o nosso coração. Só então podemos ensinar. A evangelização não é uma partilha, mas um ensinamento. Trata-se de transmitir uma mensagem que não nos pertence. Um padre que diz, por exemplo, que Cristo não fez milagre algum, está desrespeitando a mensagem do Evangelho, pois se preocupa mais em transmitir as suas ideias céticas e empiristas a anunciar a boa nova de Jesus.
A Palavra de Deus não é para ser partilhada, como se fosse objeto de “livre exame”; ela foi feita pela Igreja e para a Igreja e é “com o mesmo espírito com que foi escrita” [7] que deve ser interpretada. Sem o espírito católico de que estavam imbuídos os autores sagrados, não pode haver leitura correta das Escrituras.
Padre Paulo Ricardo