“Que todos estejam alegres no primeiro dia da semana”, diz um documento cristão antigo. Mas a alegria cristã é incompatível com a realidade da mortificação? As penitências feitas durante o tempo da Quaresma, por exemplo, devem ser interrompidas no Dia do Senhor? É o que Pe. Paulo Ricardo esclarece neste vídeo.
Fonte: https://padrepauloricardo.org/
Assista ao vídeo do Padre Paulo Ricardo
No domingo e nos outros dias festivos de preceito os fiéis têm obrigação de participar na Missa, abstenham-se ainda daqueles trabalhos e negócios que impeçam o culto a prestar a Deus, a alegria própria do dia do Senhor (laetitiam diei Domini propriam), ou o devido repouso do espírito e do corpo.
Supondo, a partir disso, que certas mortificações poderiam impedir “a alegria própria do dia do Senhor, ou o devido repouso do espírito e do corpo”, teríamos uma resposta positiva à questão apresentada: fazer penitência aos domingos seria algo contrário ao espírito do 3.º mandamento da lei de Deus.
No entanto, poucos cânones a seguir, a Igreja determina também que “os dias e tempos de penitência na Igreja universal são todas as sextas-feiras do ano e o tempo da Quaresma” (cân. 1250). Sendo assim, a pergunta permanece: é lícito ou não penitenciar-se no Dia do Senhor?
Para entender melhor o problema, nada como recorrer à mente do legislador. O mesmo homem que promulgou o Código de Direito Canônico de 1983, ninguém menos que o Papa São João Paulo II, deixou a toda a Igreja, alguns anos depois, uma riquíssima reflexão “sobre a santificação do domingo”.
Da exortação apostólica Dies Domini transcrevemos abaixo os pontos 55-58, cujo tema é “A ‘alegria plena’ de Cristo” (os trechos citados pelo Pe. Paulo Ricardo no vídeo vão em negrito; os números das referências foram mantidos de acordo com o original):
55. “Bendito seja Aquele que elevou o grande dia do Domingo acima de todos os dias. Os céus e a terra, os anjos e os homens abandonam-se à alegria (99). Estas loas da liturgia maronita testemunham bem as intensas aclamações de alegria que sempre caracterizaram o domingo, nas liturgias ocidental e oriental. Historicamente, ainda antes de ser vivido como dia de repouso aliás não previsto então no calendário civil — os cristãos viveram o dia semanal do Senhor ressuscitado sobretudo como dia de alegria. “Que todos estejam alegres, no primeiro dia da semana”: lê-se na Didascália dos Apóstolos (100). A manifestação da alegria era visível também no uso litúrgico, mediante a escolha de gestos apropriados (101). S. Agostinho, fazendo-se intérprete da consciência geral da Igreja, põe evidência tal caráter da Páscoa semanal: “Omitem-se os jejuns e reza-se de pé como sinal da ressurreição; também por isso se canta todos os domingos o aleluia.” (102)
56. Para além das diversas expressões rituais que podem variar com o temposegundo a disciplina eclesial, resta o fato de o domingo, eco semanal da primeira experiência do Ressuscitado, não poder deixar de conservar o tom da alegria com que os discípulos acolheram o Mestre: “Alegraram-se os discípulos, vendo o Senhor” (Jo 20, 20). Cumpria-se neles, tal como se há-de atuar em todas as gerações cristãs, aquilo que Jesus disse antes da paixão: “Vós estareis tristes, mas a vossa tristeza converter-se-á em alegria” (Jo 16, 20). Porventura não tinha Ele mesmo rezado para que os discípulos tivessem “a plenitude da sua alegria” (cf. Jo17, 13)? O caráter festivo da Eucaristia dominical exprime a alegria que Cristo transmite à sua Igreja através do dom do Espírito; a alegria é precisamente um dos frutos do Espírito Santo (cf. Rm 14, 17; Gl 5, 22).
57. Assim, para apreender completamente o sentido do domingo, é preciso descobrir esta dimensão da nossa existência de crentes. É certo que a alegria cristã deve caracterizar toda a vida, e não só um dia da semana. Mas o domingo, em virtude do seu significado de dia do Senhor ressuscitado, no qual se celebra a obra divina da criação e da “nova criação”, é, a título especial, um dia de alegria, mais ainda um dia propício para educar à alegria, descobrindo novamente os seus traços autênticos e as suas raízes profundas. Na realidade, a alegria não deve ser confundida com fúteis sentimentos de saciedade e prazer, que inebriam a sensibilidade e a afetividade por breves momentos, mas depois deixam o coração na insatisfação e talvez mesmo na amargura. Do ponto de vista cristão, ela é algo de muito mais duradouro e consolador, conseguindo mesmo, como o comprovam os santos (103), resistir à noite escura da dor; de certo modo, é uma “virtude” a ser cultivada.
58. Não existe qualquer oposição entre a alegria cristã e as verdadeiras alegrias humanas. Pelo contrário, estas ficam enaltecidas e encontram o seu fundamento último precisamente na alegria de Cristo glorificado (cf. At 2, 24-31), imagem perfeita e revelação do homem segundo o desígnio de Deus. Na sua Exortação Apostólica sobre a alegria cristã, o meu venerado predecessor Paulo VI escreveu que, “por essência, a alegria cristã é participação espiritual na alegria insondável, conjuntamente divina e humana, que está no coração de Jesus Cristo glorificado” (104). E o referido Sumo Pontífice concluía a sua Exortação pedindo que, no dia do Senhor, a Igreja testemunhasse vigorosamente a alegria experimentada pelos Apóstolos, quando viram o Senhor na tarde do dia de Páscoa. Por isso, convidava os Pastores a insistirem “na fidelidade dos batizados à celebração, com alegria, da Eucaristia dominical. Como poderiam eles, de fato, negligenciar este encontro, este banquete que Cristo nos prepara com o seu amor? Que a participação em tal celebração seja, ao mesmo tempo, digna e festiva! é Cristo, crucificado e glorificado, que passa entre os seus discípulos para conduzi-los todos juntos, consigo, na renovação da sua Ressurreição. É o ápice, aqui neste mundo, da Aliança de amor entre Deus e o seu povo: sinal e fonte de alegria cristã, preparação para a Festa eterna” (105). Nesta perspectiva de fé, o domingo cristão é verdadeiramente um “fazer festa”, um dia dado por Deus ao homem para o seu pleno crescimento humano e espiritual.
Considerando tudo o que foi dito pelo Papa Wojtyla, concluímos que, de fato, o domingo não é um dia penitencial. Como regra geral, portanto, não é aconselhável que acrescentemos, neste dia, mortificações à nossa lista de penitências.
Dizer, porém, que é terminantemente proibido penitenciar-se no Dia do Senhor seria ignorar, primeiro, o caráter flexível das “expressões rituais” com que os cristãos sempre viveram o espírito do domingo; segundo, o nosso estado de fragilidade nesta vida, em que necessitamos constantemente de mortificação; e, por fim, a própria natureza da alegria cristã, que pode conviver tranquilamente com os sofrimentos inerentes a esta vida, como diz o Apóstolo: “A insignificância de uma tribulação momentânea acarreta para nós um volume incomensurável e eterno de glória” (2Cor4, 17). Para um cristão de verdade, não pode haver alegria maior do que sofrer por seu Deus.
Por isso, seja no tempo litúrgico da Quaresma, unidos a toda a Igreja, seja em um tempo de purificação pessoal, vivido de modo particular e sob a orientação de um diretor espiritual, não só é possível, como muito agradável a Deus continuarmos a viver nossos propósitos de penitência também durante os domingos. Os pequenos sacrifícios que fazemos não comprometem, afinal, “a alegria própria do dia do Senhor”. Muito pelo contrário, ajudam-nos a lembrar que, diferentemente dos pagãos e dos mundanos, que depositam já aqui neste mundo a sua esperança, nós cristãos só teremos verdadeiro repouso e alegria definitiva na Páscoa eterna do Céu.
Referências
- (99) Proclamação diaconal em memória do dia do Senhor: cf. o texto siríaco no Missal próprio do rito da Igreja de Antioquia dos Maronitas (edição em siríaco e árabe) Jounieh (Líbano) 1959, p. 38.
- (100) V, 20, 11: ed. F. X. Funk (1905), 298. Cf. também Didaqué 14, 1: ed. F. X. Funk (1901), 32; Tertuliano, Apologeticum 16, 11: CCL 1, 116. Veja-se, em particular, a Epístola de Barnabé 15, 9 SC 172, 188-189: “é por isso que celebramos como uma festa jubilosa o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos mortos e, depois de ter aparecido aos seus discípulos, subiu ao céu”.
- (101) Tertuliano, por exemplo, conta que era proibido ajoelhar-se aos domingos, porque, sendo esta posição considerada, então, sobretudo como gesto penitencial, parecia pouco adequada no dia da alegria: cf. De corona 3, 4: CCL 2, 1043.
- (102) Epistula 55, 28: CSEL 342, 202.
- (103) Cf. S. Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, Derniers entretiens (5-6 de Julho de 1897): Oeuvres complètes, Cerf-Desclée de Brouwer, Paris 1992, pp. 1024-1025.
- (104) Exort. ap. Gaudete in Domino (9 de Maio de 1975), II: AAS 67 (1975), 295.
- (105) Ibid., VII (conclusão): o.c., 322.